Treinador Gabriel Vargas analisa os prós e os contras dos dois cenários no treinamento de alta intensidade e na preparação para provas
Gabriel Vargas/Especial para o Bikemagazine
Fotos de divulgação e arquivo
Os treinos intervalados, específicos ou em alta intensidade são vitais para quem busca desenvolver suas capacidades e performance em qualquer modalidade do ciclismo. São a segunda coisa mais importante a se fazer em cima da bicicleta no treinamento – a primeira é o volume total, ou seja, o total de horas acumuladas sobre o selim.
Esse tipo de treino é fundamental em qualquer programa de treinamento, até mesmo para quem não pretende competir em alto nível. Ao trabalhar próximo aos limites e fora da zona de conforto, ciclistas expandem suas capacidades aeróbias e anaeróbias, aprimoram a técnica da pedalada, a capacidade de recuperação etc. O ideal é que esses treinos de intensidade sejam realizados uma ou duas vezes por semana, com os demais dias dedicados a treinos focados em resistência ou recuperação.
No dia a dia do trabalho com treinamento, vejo atletas capazes de entregar o seu melhor nos treinos de alta intensidade, executando com perfeição as sessões planejadas. Por outro lado, há ciclistas que simplesmente não querem ou não conseguem atingir o objetivo nesses treinos. Existe uma alternativa muito atrativa e divertida, porém: o pelotão.
Muito comum em inúmeras cidades que tem certo número de praticantes, o pelotão é nada mais do que um conjunto de ciclistas reunidos tentando ser tão rápidos quanto for possível. A cena do pelotão geralmente acontece bem cedo ou tarde da noite ao redor de praças, avenidas e às vezes até nas estradas. Não é raro um treino em pelotão ser mais duro do que uma prova, e muitas vezes são 60 a 90 minutos com médias próximas ou acima dos 40 km/h. Diferente das provas, os treinos em pelotão geralmente não tem uma partida e uma chegada, especialmente nos trajetos urbanos com várias voltas. Também diferente das provas, o objetivo é fazer um treino duro e árduo, por isso não há motivo para poupar energias – se numa competição eu procuro ficar abrigado do vento bem no meio do pelotão, nesses treinos a ideia é passar o maior tempo possível ditando o ritmo na ponta.
Se o objetivo é trabalhar alta intensidade e se preparar para provas ou outros eventos, por que trocar o agitado e disputado pelotão por um treino solitário perseguindo números? A melhor preparação é o intervalado ou o pelotão? É errado encontrar treinos de pelotão na planilha de treinamento? Quais as vantagens e prejuízos de realizar os treinos exclusivamente no pelotão ou exclusivamente sozinho? Como tudo sempre “depende” no treinamento, vamos ponderar alguns aspectos sobre cada cenário.
Treinos intervalados
São aquilo que chamamos de uma “sessão estruturada”, ou seja, os exercícios são planejados e as intensidades e a duração dos blocos são determinadas de acordo com os objetivos daquele treino. Em geral, um treino intervalado é composto por vários blocos de tempo em uma determinada intensidade, intercalados com períodos de recuperação. Toda a arquitetura de uma sessão estruturada depende bastante de metas claras e do conhecimento e experiência do treinador.
Há inúmeros tipos de treinos intervalados, variações e possibilidades. Podem ser mais simples, alternando trechos em um esforço alvo com trechos de recuperação, ou podem mesclar diferentes intensidades em esforço crescente ou decrescente; podem ser focados não em intensidade, mas sim em força (cadência baixa) ou velocidade de movimento e técnica (cadência alta). Podem simular situações de prova, como um ataque (sprint + trecho forte) ou uma chegada (trecho forte + sprint); podem ser baseados em potência, frequência cardíaca, percepção de esforço ou cadência, e quase sempre são determinados por tempo. Muito, muito raramente são baseados em distância e praticamente nunca são baseados em velocidade – esses dados não representam um controle real sobre o trabalho que está sendo realizado.
Os treinos intervalados também assumem características diferentes de acordo com o momento da temporada, o tipo de prova alvo, os pontos fracos e fortes do atleta, a modalidade, entre inúmeros outros detalhes. Além disso, eles podem ter a função de desenvolver uma qualidade de maneira absoluta ou desenvolver a capacidade daquele atributo ser repetido diversas vezes.
Vantagens:
Especificidade: é o principal mote do treino intervalado. Com as sessões estruturadas, é possível atingir em cheio uma demanda específica do atleta. Vai competir uma prova de XCO? Temos treinos específicos para isso, que levam em consideração o tipo de terreno, a cadência, a intensidade, a duração dos tiros e o tempo e intensidade de recuperação; Vai participar de um Audax? Temos também alguns trabalhos voltados para as características desse evento. Um treino forte aleatório ou um pelotão simplesmente não contemplam essas demandas com um aproveitamento ótimo do tempo de treino.
Reprodutibilidade: a possibilidade de realizar o mesmo treino em diferentes ocasiões e até mesmo em diferentes locais também é um ponto a favor. Isso é muito importante no andamento da preparação de um atleta e também é um aspecto importante para a análise do treinamento.
Viabilidade: o atleta precisa treinar em alta intensidade, mas não há um pelotão ou um grupo de ciclistas de nível próximo em sua cidade, ou naquele horário específico. Elaborar treinos que exigem o mesmo tipo e nível de esforço mas que podem ser realizados sozinhos é viabilizar o acesso ao treinamento de alta intensidade. O mesmo vale para a simulação de situações de provas, mesmo para quem tem um calendário magro.
Desvantagens:
Motivação e foco: há ciclistas que, sozinhos, não conseguem chegar perto das potências que entregam no pelotão ou em provas. Cheguei a ver um atleta que puxava o pelotão ao redor de um parque por meia hora a 300w, mas na semana seguinte não conseguia fazer 5’ a 320w uma vez sequer. Executar um treino intervalado de alta intensidade exige muito foco e muita paciência. Que tal tiros de 20 minutos próximo ao limiar, no rolo? O trabalho precisa ser feito e alguns atletas simplesmente abaixam a cabeça e o fazem. Mas isso não é para todos, e no trabalho com treinamento com ciclistas amadores, há ocasiões em que isso é algo difícil de exigir.
Monotonia: especialmente quando o treinamento exige muito foco em um mesmo tipo de exercício ou quando o treinador não tem soluções para variar o trabalho específico. Há algumas variações e artimanhas que podem não ser necessárias do ponto de vista da performance, mas são muito úteis para manter o atleta focado e empenhado na execução das sessões estruturadas.
Falta de propósito: essa é uma das piores situações no treinamento intervalado. Acontece quando o treinador passa treinos iguais para todos os seus atletas ou apenas pega uma planilha na “prateleira”. Ou, também, quando o treinador não faz a mínima ideia do que está fazendo e qual a fisiologia envolvida naquele tipo de esforço ou as demandas específicas da prova alvo.
Treinos em pelotão
É um tipo de treino não estruturado, ou seja, é impossível ou inviável planejar exatamente o que irá acontecer nesse treino. Quase sempre, uma coisa é certa: o ritmo será forte e o treino será intenso. O ciclista pode optar por apenas acompanhar o pelotão, alternar no revezamento ou até mesmo arriscar alguns ataques; também pode estar com o pelotão apenas por um período de tempo, dedicando o restante do tempo a outros exercícios ou resistência. Nas cidades em que há os pelotões A e B (e às vezes o C), é possível também alternar entre os grupos de acordo com a intensidade pretendida para o dia. O problema, porém, é o ego. Qual atleta do pelotão A quer ser visto no grupo B? E os frequentadores do pelotão B que não tem confiança para tentar algumas voltas com o A?
Vantagens
Motivação e ritmo: Se o pelotão está esticado a 40 km/h, o atleta não tem onde se esconder. Ou ele está no pelotão ou não está. Há pouca oportunidade para corpo mole e queda no ritmo, o que não é raro em treinos intervalados solitários. Basta apenas seguir a roda de alguém, e se bater uma dúvida, não pense: prossiga seguindo a roda de alguém. E claro, é muito mais divertido fazer força enquanto colocamos os colegas em sérias dificuldades do que sofrer sozinho e sem platéia na estrada ou no rolo.
Dinâmica de pelotão: seja para atletas de ciclismo ou MTB, há algo único na vivência da situação de estar em meio a outros ciclistas, com rodas e guidões a centímetros de distância, sob situação de grande esforço, fadiga e hormônios. “Cortar” ou “sobrar de roda” não é uma opção – custe o que custar, nunca perca a roda que está à sua frente. Como se comportar em curvas, como lidar com os demais ciclistas perante obstáculos, trânsito, vento, percurso, etc. Tudo isso são experiências fundamentais para situações de prova.
Economia e velocidade de movimento: as pequenas variações de velocidade e posição dentro do pelotão podem ser extremamente desgastantes para os mais iniciantes e para os desatentos. Quando o ciclista acerta a cadência, o posicionamento e, principalmente, quando ele aprende a como reagir às variações de velocidade, ele desenvolve a capacidade de ser fluído e econômico em sua pedalada, algo que será útil também na estrada e na trilha, mesmo que sozinho.
Desvantagens
Imprevisibilidade: é seu dia de treinar forte, mas está frio e ninguém apareceu? Alguém furou pneu e o pelotão resolveu parar para esperar? Foi puxar forte e todo mundo sobrou? Acontece. Tenha sempre uma carta na manga.
Risco e quedas: o grupo cerrado de ciclistas invariavelmente leva a alguns sustos, esbarrões, toques de roda, e às vezes… uma ou outra queda. Além disso, pelotões no ambiente urbano estão sujeitos ao trânsito, pedestres, lombadas, buracos, e outros riscos. Infelizmente, é muito comum vermos pouca sensatez entre os frequentadores de pelotão, o que apenas prejudica a imagem do esporte e de seus praticantes.
Rivalidades e outras interações sociais indesejáveis: se ainda não ficou claro o bastante, um dos principais motores do pelotão é o ego de quem dita o ritmo. Queremos mostrar que somos fortes, que somos incansáveis, que podemos segurar os 45 por hora. Não há nada de muito errado nisso e na maioria das vezes esse fator rende ótimos treinos; às vezes, porém, rende ameaças, agressões e outras situações complicadas – que podem até colocar os demais ciclistas em risco. Ou, em casos menos graves, alguns ciclistas percebem a ponta do pelotão como um local hostil, ao qual ele não pertence, e ele jamais participa do revezamento. Perdendo, assim, a oportunidade de elevar o próprio nível e desfrutar totalmente desse tipo de treino.
Intervalados e pelotão no rolo
Não é de hoje que o rolo é considerado um excelente aliado na execução do treinamento específico, especialmente em tempos de medidores de potência. Há muitos casos em que o ambiente controlado do rolo é vantajoso em relação ao terreno variado da estrada, vento, condições de piso, trânsito, etc. Há até atletas profissionais que optam por executar os intervalados no ambiente indoor.
Com a chegada dos rolos smart e dos ambientes virtuais, como o Zwift e o Rouvy, as possibilidades estão ampliadas e é possível simular percursos, trabalhar em amplas faixas de esforço e cadência e até mesmo encarar pelotões e provas virtuais. Esse cenário tem sido muito valioso para um número enorme de ciclistas amadores, permitindo uma rotina de treinamento otimizada, proveitosa, divertida e segura. Praticamente tudo que foi mencionado ao longo do texto sobre os dois tipos de treino vale também para o rolo (exceto, talvez, o risco de quedas e de arranjar briga no pelotão virtual).
Conclusão
Há vantagens e desvantagens em cada cenário, e se é possível optar por ambos, é preciso levar em consideração quais os objetivos e os melhores benefícios de cada alternativa. Tenho atletas que tem obtido sucesso alternando treinos intervalados individuais com treinos no pelotão. Assim, podemos focar em pontos específicos da performance em um treino, e colocar tudo em prática em outro.
Não é possível responder precisamente se os treinos em pelotão são vitais para a preparação de um ciclista competitivo, por exemplo. Isso dependerá de vários, vários fatores. É certo que a melhor abordagem é aquela que leva em consideração as demandas e necessidades específicas do atleta, dos objetivos e do contexto.
Gabriel Vargas – Treinamento em ciclismo
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